Lá estava ela. Sentada na beira da calçada, como fazia todos os domingos à tarde. Sempre pensei em chegar mais perto... Em perguntar o porquê daquela garota ficar ali, em pleno final de semana, por horas e horas contemplando o vazio.
O tempo passou... passei a reparar mais naquela cena dos domingos. A garota ficava ali, sentada, olhando pro nada, murmurando coisas sem sentido. "Está louca" logo pensei. Mas, de alguma forma, ela havia me visto aquele dia.
- Oi - disse ela, com uma voz pastosa como se tivesse acabado de chorar.
- Oi.
- Você vem sempre aqui me ver aos domingos, fica me analisando por horas... - A garota dá um sorriso amarelo ao ver a minha expressão atordoada. Ela havia me percebido há tanto tempo? - Provavelmente deve me achar maluca não é?
- Não, é que, eu apenas pensei...
- Que eu estava ficando doida, é só. Mas não é isso. Tenho meus momentos de insanidade quando preciso, mas meus domingos são completamente lúcidos.
Após ouvir aquela frase, tomei coragem para lhe perguntrar o porquê dela ficar ali, horas a fio, olhando pro horizonte, como se não tivesse rumo algum na sua vida.
- Não tenho mesmo - respondeu ela -, faz tempo que eu perdi a razão da minha existência. Fico aqui, me lembrando das coisas boas, falando com fantasmas do passado, relembrando a época em que eu conhecia a verdadeira felicidade...
"Tudo começou quando eu era bem pequena. Havia me mudado há pouco tempo para esta cidade, não conhecia ninguém, e, por mais que eu tentasse me aproximar, as pessoas simplesmente desviavam o olhar de mim. Talvez por me verem falando "sozinha" me achavam louca. Mas eu nunca estou sozinha pra falar a verdade. Sempre gostei de conversar comigo mesma, me entender mais, me conhecer mais. Por mais idiota que isso lhe pareça, eu fico aqui, falando comigo mesma, e consigo descobrir coisas que eu não sabia.
Até que, um dia, um garoto veio falar comigo. A primeira reação dele ao me ver foi - como todos faziam - fazer uma piadinha sem graça sobra minha "insanidade". Apesar da groceria, eu estava, de algum modo, feliz. Feliz pois eu via a felicidade nos olhos dele. Pela primeira vez na vida, fui capaz de compartilhar um sentimento com outra pessoa. Ficamos ali, sentados na calçada, conversando por horas, nos divertindo com as piadas que ele contava, falando mal dos nossos vizinhos - que por sinal adoravam uma fofoca -, enfim, em apenas uma tarde eu fui capaz de sentir tudo que uma pessoa "normal" é capaz. Voltei pra casa completamente diferente, completamente realizada comigo mesma, e, feliz por ter conhecido aquele garoto, que não havia me achado tão insana quanto eu aparentava."
"Continuamos a nos encontrar, todos os domingos, na mesma calçada. Sempre tínhamos assuntos diferentes pra discutir, sempre nos divertíamos falando dos outros e rindo de piadas nem tão engraçadas assim.
Um belo dia, ele não estava na calçada quando eu saí para conversarmos. ele estava sentado no banco da praça do nosso bairro, olhando pro horizonte.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei, espantada de não encontrá-lo no nosso "local sagrado"
- O pôr do sol aqui é lindo... Sempre venho até aqui para me lembrar das coisas do passado, para reviver momentos felizes em minha mente.
Me sentei ao lado dele, e juntos, ficamos olhando sem rumo, para o céu que começava a desbotar timidamente de um azul cintilante para um laranja intenso. E como aquela vista era bonita... Me senti completamente em paz comigo mesma, me senti flutuando, literalmente. E tudo aconteceu num passe de mágica. Em poucos segundos eu estava nos braços dele, nos beijávamos pela primeira vez. Um beijo tão intenso que cheguei a perder o fôlego... Uma sensação estranha tomou conta de mim. Estava eufórica, me contorcendo de felicidade por dentro. Meu ego gritava como se estivesse esperando há muito tempo que isso fosse acontecer...
Fui pra casa aquela noita cantarolando nossa música preferida das nossas tardes na calçada. Já estava pensando no que aconteceria no outro dia, e no outro, e no outro...
Mas o outro dia não aconteceu. Ele não estava lá. Nem na praça, nem na calçada, nem em lugar algum que conhecíamos. Por um momento fiquei preocupada, mas logo pensei "ele deve ter tido algum problema com a família e não pôde vir... ele sempre briga com os seus pais...". Voltei para casa, ainda pensando na tarde anterior, quando aprendi o que era amar, quando descobri que meu melhor amigo na verdade tinha sido destinado pra mim, que nós nos completávamos...
O dia seguinte chegou, com um grito que ecoou na minha rua. Era uma voz conhecida: era meu amor. Desci correndo as escadas do meu prédiop, ainda com meu pijama e pantufas do Garfield - que ele havia me dado - .
A rua estava iluminada com luzes azuis e vermelhas, piscando de todos os lados. No centro daquela cena de azuis e vermelhos, estava um homem, com os braços estendidos e uma faca na mão. Ao lado dele, havia algo... uma pessoa caída. Demorei pra assimilar aquela cena. Tudo passou diante dos meus olhos como um filme... O dia que nos falamos pela primeira vez, nossas conversas animadas nos domingos à tarde...
Eu não tinha percebido que estava gritando a plenos pulmões. Minha garganta doía, mas eu não queria parar de gritar. Não queria acreditar no que meus olhos lacrimejantes viam à sua frente. Minha mãe tentou me segurar, mas eu, sem perceber, já estava correndo ao encontro do meu amor... Ao lado dele, estava um buquê de rosas vermelhas. Não dei atenção. Olhei para ele, não me importei com toda aquela multidão, me desvencilhava dos vários braços que tentavam me conter... Ajoelhei-me ao seu lado, e lá fiquei, admirando o rosto de menino que ele tinha... Pensando em tudo que não havíamos feito, em tudo que poderia ter acontecido... Já havia preparado mil planos... e tudo que eu via na minha frente era, sangue. Tudo ficou calado por um instante, e então, eu o vi, do meu lado. Como se nada tivesse acontecido, ele me abraçou. Não sabia o que estava acontecendo. Ele apenas me abraçou, e tudo ficou tão calmo, mas tão calmo... Esqueci do que acontecia ao redor, esqueci dos gritos dos vizinhos, esqueci das dezenas de policiais tentando me tirar de lá...
Ele pegou minhas mãos, olhou nos meus olhos com aquele brilho de felicidade, e me disse:
"Leve as rosas, eu as trouxe pra você." - Dizendo isso, eu desmaiei.
Acordei no dia seguinte, no meu quarto, esperando que tudo aquilo tivesse sido apenas um sonho ruim. Me levantei, abri as janelas, e contemplei o sol que acordava. Me sentei na cama, esfreguei meus olhos lentamente, um pouco aliviada. Passei os olhos pelo meu quarto, e minha visão parou bruscamente. Do lado da porta, havia um buquê de rosas vermelhas, que havia sido inutilmente colocado em um jarro com água. As flores estavam irreconhecíveis. Me levantei e caminhei lentamente até o jarro. Toquei as pétalas, e me lembrei do meu melhor amigo, do meu amor... Lágrimas escorreram por minha face. fiquei ali por mais de uma hora, tocando nas flores, me lembrando dos bons e maus momentos... Até que um pequeno bilhete chamou minha atenção.
Peguei-o cuidadosamente e o desdobrei para ler.
"Oi meu anjo,
Essas flores representam o que há de mais puro entre eu e você: o amor. Cuide delas com carinho, pois um pedaço de mim está nelas. Um pedaço de nós está nelas. Queria poder te entregar pessoalmente, mas sinto que não posso. Meu tempo aqui já acabou, preciso voltar para onde eu realmente vim. Meu pai virá me buscar esta noite, mas farei o possível para que você as receba. E, não se esqueça nunca, que vou estar sempre em seus sonhos, em seus pensamentos, em seu coração. Nunca vou me separar de você, por mais que uma força maior que a minha me obrigue a fazer isso.
E nunca se esqueça de mim, pois eu nunca me esquecerei de você.
Seu eterno amigo e amor."
Li e reli aquela carta por várias vezes. Por fim, resolvi descer para tomar meu café. Cheguei a tempo de ouvir no noticiário, que um garoto de 16 anos havia sido morto pelo pai com 23 facadas nas costas, na rua em que eu morava. Era ele, era o meu amor, meu anjo, meu amigo... Ele realmente havia partido. Agora ele estava em um lugar que eu não poderia mais tocá-lo, nem ouvir suas palavras de carinho.
Voltei para o meu quarto, e continuei contemplando as belas rosas vermelhas, ainda com lágrimas nos olhos.
Hoje sei que falta um pedaço de mim. Foi um pedaço de mim que meu anjo tirou, para que nunca se esquecesse do que passou ao meu lado. E, por mais que isso doa no começo, estou feliz que ele tenha levado algo de mi, para que nunca se esqueça do nosso amor eterno. Assim como a rosa que nunca deixaria de cuidar, meu amor por ele nunca acabaria."
- E hoje estou aqui - completou a garota, com os olhos marejados de lágrimas - Hoje faz um ano que ele morreu. Ainda me sinto vazia, ainda me sinto incompleta. Mas ainda venho até aqui, todos os domingos, para conversar com ele, para agradecer, pois eu sei, que de alguma forma ele está me ouvindo. Posso até sentir ele aqui, sorrinho pra mim, me pedindo para seguir em frente...
Dizendo isso, a garota se levantou, e voltou pra casa, com um belo pôr do sol ao seu redor, cantarolando uma música que eu não conhecia...
E, bem diante dos meus olhos, ela desapareceu. Agora era eu quem estava me sentindo vazio. Faltava algo em mim, e eu iria buscá-lo até o fim. Não deixaria minhas rosas secarem. Iria atrás do meu amor, iria atrás de mim mesmo. Passei a fazer o estranho ritual daquela garota, para me conhecer mais, para me entender mais... Foi aí que uma menina da minha idade me parou um dia e pe perguntou: "você é doido"?
- Não - eu disse -. Só estou aprendendo a cultivar minhas rosas para entregar ao meu anjo.